Esse texto nasceu inspirado em uma quinta-feira, bem no meio do mês de setembro, no inicio da primavera. A correria da manhã foi ainda mais intensa, e não imaginava que viveria tantas emoções em um só dia.
Logo cedo fui à CADEG, mercado de flores, comprar algumas violetas e arranjos para o evento da caminhada pela paz que faríamos no entorno da creche que trabalho.
Entre algumas flores já compradas e com as mãos repletas de bolsas, vi dois vasos de margaridas brancas, e me encantei. Pensei, esses comprarei para presentear. Enquanto pagava a conta e me ajeitava entre dinheiro, vasos e bolsas meu celular tocou. Era meu filho querendo saber se realmente iríamos no shopping para colocar o alargador em sua orelha.
Eu já havia conversado com o profissional um dia antes, e fiquei de dar a resposta ao meu adolescente. Respirei e disse que sim, que iria buscá-lo mais tarde para levá-lo. E então, cheia de coisas, voltei para a creche como uma florista extremamente desajeitada. Algumas flores nem resistiram a minha falta de jeito, mas as margaridas sim!
Lilia Martins, que trabalha comigo logo que viu as margaridas, tão pomposas e brancas, repletas dentro do vaso, admirou!!! Combinamos as pessoas que presentearíamos. Mas, logo chegou uma funcionária e disse que não gostava de margaridas, pois lembrava túmulos. Em pouco tempo, chegou outra, e então fez um alarde, que aquilo era flor de cemitério, e cheirava à defunto. Eu e Lilian dissemos que não, que eram lindas, mas as duas teimaram que eram flores de cemitério. Nós então desconfiamos da nossa própria opinião.
O dia passou rápido enquanto enfeitávamos a creche para o dia seguinte.Já as margaridas ficaram lá no canto, aguardando o destino de suas brancas pétalas. À noite , conforme combinado, passei de táxi para buscar Vinicius, e fomos fazer seu alargador.
É engraçado que para as mesmas ações, significados diferem. Quando comentei com alguns amigos que permiti que meu filho fizesse a perfuração na orelha, tive respostas negativas, caras feias e conselhos dos mais variados. Há pessoas que não sabem da história completa, mas vestem-se de pequenos deuses com cetro na mão, julgando os bons e os maus, os santos e pecadores. E não se constrangem em falar em alto e bom som suas verdades absolutas. E creiam-me ouvi até: "Vai botando alargador aí, que daqui a pouco estará alargando outro lugar." E quem disse, falou para mim e para meu filho. E esses deuses, saem por aí citando o céu e o inferno que inventaram, e os merecedores destas eternidades.
Tem uma parte oculta na história das margaridas e do alargador. A creche que trabalho fica no bairro Caju, do Rio de Janeiro e é rodeada de cemitérios. A maior parte dos funcionários e professores vivem no Caju e passa pelo cemitério todos os dias. Débora, que fez maior escândalo nasceu e cresceu no bairro. As margaridas são vendidas em frente aos cemitérios, e seu cheiro é exalado nas ruas.
Embora eu trabalhe no Caju há anos, minha vivência é outra. Fui à cemitérios poucas vezes, e não tenho o cheiro fúnebre das margaridas registradas em minhas memórias. Lilian, também não. Só conhecemos a beleza e suavidade. A diferença de nossos registros, nos deu significados diferenciados. A história de cada vida, trouxe à tona que margaridas para moradores do Caju, não tem a mesma beleza que tem para mim. E é singelo poder ter lições assim, pois faz com que desconstruamos conceitos arraigados, e consigamos entender que cada pessoa precisa ser respeitada.
Quanto à perfuração da orelha do Vinicius, seu sentido é profundo pra mim. Desde que meu filho nasceu, durante sua infância, nossas vidas foi em hospitais. Recordo que ele tinha apenas um aninho e estava internado no Hospital dos Servidores. Lá, ele foi tão furado, que não havia mais lugar no corpo para colocar o soro. A todo o tempo, eu estava colocando paninhos embebecidos em água morna para diminuir o inchaço de suas pequeninas mãos, antebraços e pés , pois como era pequeno e se mexia bastante, a agulha sempre saía da veia e entrava no tecido, tornando-as grandes, inchadas.
Com 6 anos ele teve meningite. Foram dias difíceis, desde a primeira febre alta, diagnóstico, pulsão, internação... Todas as perguntas que fiz , lágrimas eternas... Lembro que eu o olhava adormecer, e o seu sono inocente não era respeitado pelas agulhas ... O pior dia, foi quando foram colher o líquor da medula para a cultura, afim de saber se a meningite era viral ou bacteriana. Foram necessários 6 enfermeiros homens para segurá-lo. Enquanto eu chorava ele dizia: "Mãe, você não me ama. Não deixa eles fazerem isso comigo."
Ele tinha apenas 6 aninhos. Depois da violência contra sua inocência, que nada entendia, ele fraquinho, só me olhava, rancoroso.. não falou comigo até o dia seguinte. Graças ao meu Eterno Deus, foi viral, e não houve sequelas físicas. Ficaram nossos traumas, medos. Vinicius não aceitava ir ao barbeiro, tinha medo do branco que usavam, da tesoura. Depois disso, as vezes que precisou colher sangue para exame ou por alguma emergência, eram momentos difíceis. Os registros da memória afetam a cor, o cheiro, o local.
Então, agora, aos 15, quase 16 ele diz que quer fazer uma perfuração na orelha. "Mas filho, você não gosta de agulha..." "Mãe, eu tenho que aprender a suportar a minha dor, preciso perder meu medo." E fomos. "Dói?" ele perguntou ao Piercer, "Sim, dói" . E então escolheram o tamanho.
Vinicius mexeu no celular e meu deu: "filma" Claro que não. Nem entrei na sala. Fiquei conversando com as meninas tatuadas, tentando esquecer minha aflição. Lembra dos registros? Não esquece o contexto... Mas quando ele saiu da sala com a orelha inchada, vermelha e o sorriso no rosto, me deu um orgulho tão grande. Ele superou seu medo, e tenho certeza que ele venceu a dor do passado, ali, naquela sala.
"Tá lindo!" Acho que foi isso que eu disse. A certeza foi o que eu disse depois: "Eu também quero"
me senti mais forte, corajosa. Acho bonito alguns piercings femininos, mas jamais pensei que de fato faria isso. Mas fiz, coloquei dois, um na orelha e outro no nariz. Achei uma graça quando ele chegou na porta e disse: "Mãe, não faz no nariz, dá bolinha, inflama.. To avisando, vai se arrepender!"
Eu vou te dizer: Dói!! É rápido, mas não tem anestésico, e agulha dentro!!! Vinicius assistiu meu drama, porque eu choro! No final dos dois furos, o Piercer disse que o furo do Vinicius doeu duas vezes mais os meus dois juntos.
Então, alguns acham horrível, outros acham que e questão de opção sexual, cada um com sua história... eu tenho a minha. Quantos do que julgam o bonito e o feio, o certo e o errado seguraram nossas mãos quando souberam que meu filho estava internado? Alguns, inclusive da família nem ao menos ligaram para perguntar se estavam tudo bem.
No quesito Margaridas, não poderia mais presentear a ninguém com elas, entendi a história, o motivo. Elas estão lá, enfeitando a sala e esperando seu destino. Quanto ao alargador e aos piercings, foi uma experiência bonita e que me fez muito feliz. Tomara que nada inflame!!
Deuses com seus cetros e comandos.. eles não sabem de nada.
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