sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Onde Mora a Maldade


Estou para escrever sobre isso há mais de quinze dias. Não consegui, tamanha crueldade, tamanho impacto desse fato sobre minha vida. pensei também em vários títulos pra iniciar meu desabafo. Pensei em Mulher, Negra, Nordestina e da Favela - como Lilia disse em uma de nossas conversas pelo fato de sua história  não ser lembrada, reconhecida em qualquer mídia. Podia intitular Dormindo com o Inimigo, sei lá.... Onde Mora a Maldade talvez traga a complexidade do que esse episódio representa.

Neste texto falo de Marinalva. Conheci há cinco anos e lembro como se fosse hoje. Eu estava na sala de leitura da creche que trabalho e  em pé em cima de uma cadeira arrumava o armário. Ela estava se apresentando como funcionária e eu estava espantada com sua altura. Acho que a minha primeira frase foi "Nossa, você é alta!" Disse isso muitas vezes a ela, talvez por isso ha dias atrás tenha me assustado com o tamanho de seu caixão, e ter perdido o bom senso da hora, dizendo que ela tinha quase dois metros e não caberia ali.

No meu aniversário, dia 29 de julho


 Marinalva era como Lilia disse. Mulher, negra, maranhense, e morava na comunidade do Caju, Talvez por isso não tenha alcançado nenhuma pequena nota em jornais. Muito embora sua morte tenha sido uma das mais hediondas que eu tenha tomado ciência .

Marinalva era  sim uma linda negra, alta, estilosa, forte,trabalhadora, professora, dona de casa. Ela criou sobrinhos, cuidou da mãe, cuidou da irmã. O tom de sua voz, firme e forte era as vezes um problema. Queria que ela falasse mais baixo mas isso nunca implicou falta de afeto com nossos pequenos, pelo contrário, ela os amava. Ela os ensaiava para as coreografias de festas com tanta destreza, e suas apresentações eram ricas na beleza e nas fantasias que confeccionava em meio a sua luta diária. Era quase engraçado ver ela em pé dançando com as crianças tão pequeninas. Ela chamava a atenção das crianças de um jeito que Tia Lilia sorria de canto de boca. Lilia sempre gostou dela, a escutava e defendia. De muitas vezes que Marinalva desejava largar tudo, creche, Rio de Janeiro, e desanimava em sua árdua e curta peregrinação, Lilia a incentivava a continuar, a fazer um bom plano de saúde, a cuidar de sua coluna, de suas mãos, de sua tristeza. Passou meses fazendo fisioterapia, dividindo seu tempo entre sua saúde, creche e  cuidados com a irmã, que precisava de cuidados especiais.


A luta de Marinalva pareceu ser amenizada, quando mergulhou em um novo mar de amor. Era setembro de 2015. Sua história de amor/terror começou em uma loja em Bonsucesso. Ele anotou o número dela, e passou a ligar pra ela. Sua insistência a cativou e ela cedeu ao encontro. O amor veio no primeiro encontro, e a loucura da paixão, primeira grande loucura de Marinalva. Ela de tão forte, tão segura e armada destrancou todas as grades, colocou abaixo todos os muros e se entregou de corpo e alma àquele homem de olhos azuis, que arrebatou seus batimentos cardíacos, de forma subjetiva e literal, 

Com menos de uma semana Marinalva e seu amor, contra todos os bons sensos foram morar juntos, na casa dela. Marinalva era pura manifestação da felicidade. Seus poros exalavam celebração, e quem conheceu sabe que não estou poetizando, enfatizando o amor. Ela se transformou. Ela só falava nele, contava seus ciúmes, suas receitas, seus cuidados, E quem éramos nós, pobres mortais para contestar seu momento feliz? As escondidas, falávamos o quão louco era esse momento, mas de novo quem éramos nós para nos entrometer ? Deixamos nossas dúvidas, o que achávamos perigoso pra nossos corações duvidosos.

Colcha de retalhos confeccionada pela Marinalva, na qual a comunidade desenhou.


Em abril deste ano, Marinalva passou a ficar em silêncio. Percebemos. De novo calamos. Comentávamos entre nós, mas respeitávamos o que pudesse estar acontecendo. Pensamos mesmo que  seu silêncio estivesse conectado a alguma decepção daquele amor explosivo. Josineide, professora, perguntou sobre ele, cerca de um mês atrás. Ela respondeu "está lá." Resposta oca, sem muito a ver com a alegria de meses atrás.

Dia 29 de julho deste ano, as meninas da creche me fizeram uma festa surpresa da mulher maravilha pelo meu aniversário. Marinalva estava lá.  Cabelos com a raiz branca, o que ela nunca deixava aparecer. Tiramos foto. Ela riu com a gente. Foi uma sexta-feira, último dia de aula, antes do recesso escolares pelas Olímpiadas 2016 . Não sabíamos que nunca mais a veríamos.

Segunda-feira, dia 01 de agosto foi a última vez que foi vista com vida, mas somente quinta-feira a família invadiu sua casa, após tamanho sumiço. Marinalva tinha hábitos como falar com a família, vizinha de sua casa, todos os dias. Não levou a irmã no aeroporto na terça-feira, como faria. As desculpas do marido quando a família procurava por ela, é que ela tinha saído.



Débora, ex funcionária da creche, amiga e vizinha de Marinalva, me ligou quinta, dia 04 quase à meia noite e disse que havia movimento de PMS na porta da casa dela, que o portão estava aberto, que ela não estava lá e que estavam comentando na rua sobre assassinato. Débora queria que eu ligasse para Marinalva. Não tive coragem e liguei para Mõnica, que também não tinha coragem. Débora voltou ao portão e me mandou o áudio dizendo que era ela.

Com crueldade que não posso descrever o homem que ela colocou em sua casa, em sua cama matou Marinalva com marreta, e conviveu com seu corpo por mais de três dias, dormindo, alimentando-se ao lado do corpo que permanecia no chão. Escrever isso é de fato tão insano, e eu penso que não pode ser real. Mas foi, por mais que eu não queira acreditar.

Foi uma noite eterna, onde nós da creche passamos a madrugada entre mensagens, ligações, áudios e muito choro. Vi sua família chorando mas não posso imaginar o tamanho do sofrimento que passaram e passam, e das perguntas que jamais serão respondidas.

Sábado fomos ao seu enterro, mas o corpo não chegou pois  não havia mais vagas. Domingo, após palavras do padre da Paróquia de Marinalva, ela foi enterrada. Foi um enterro imensamente triste. 

Deveríamos acreditar que Marinalva não devia ter se envolvido, que foi precoce? Acho que não. Como julgar seu amor e paixão explosiva, sua entrega? Quem nunca fez loucuras por amor, quem nunca se excedeu por paixão? O problema não está no amor que ela doou, mas na maldade escondida no lobo vestido de cordeiro. O problema estava na frieza e crueldade ocultadas naquele homem.

Não consegui ainda passar um dia sem chorar por Marinalva, pois questões sobem a superfície. Penso em quantas pessoas tem segunda chance . Marinalva não teve . Ela foi ferida mortalmente. Ela não conseguiu pedir socorro, ela não teve ambulância e nem quem segurasse sua mão na hora de sua partida. Não e minha intenção dramatizar o que já é dramático, mas o que verdadeiramente corrói meu coração. por que de todos os nossos medos, esse é um que jamais imaginei . 

Me corrói dúvidas se ela esperou ajuda, se teve tempo de pensar, e se sofreu. 

Me faz sofrer a loucura de não conhecermos o outro, o próximo, suas neuroses, doenças, pensamentos. E estou assustada. Uma amiga disse quando saíamos do enterro que ela nunca mais se envolveria novamente em compromisso . Não creio que possamos viver isolados, e por isso mesmo o temor.

Sei que injustiças, crimes e covardias acontecem diariamente em todo o mundo, mas a estatística aumentar não me tira o direito de poder sofrer. O fato desses covardes se multiplicarem na terra não me dá o direito de minimizar, e esquecer.

Vou seguir, tenho e devo prosseguir, mas ver nossa preta partir assim mudou de forma significativa meu modo de olhar o mundo, algo em mim mudou, e não sou mais a mesma. 

Não quero e não vou minimizar os fatos porque já se passaram vinte dias. O mundo continua e a vida continua, mas não vou minimizar. O tempo realmente cura feridas, ameniza as dores, mas não quero esquecer quem ela foi, e o que representou para nós, e como seu tom alto, seu sotaque maranhense, e seu cotidiano , sua vida  fará falta para as crianças.

Marinalva, sua história e vida não foi anunciada em nota em nenhuma mídia, mas você prosseguirá na história que fez com nossas crianças, e pelo que representou na vida de cada um que te conheceu.





sábado, 6 de agosto de 2016

Marinalva


Não sei se o que sinto é tristeza profunda, indignação, revolta, medo... Minha cabeça está um caos. Sim, eu sei que o mundo está submerso em maldade, que há pessoas ruins, que a gente sai pra rua segurando as bolsas. Sei que evitamos andar à noite e agradecemos quando nós e nossas famílias retornam pra casa em segurança. Sei que há tiros achados e perdidos alcançando gente de bem, que há corrupção, q os hospitais estão abandonados, que as pessoas morrem por negligência. Sei que há doenças avassaladoras, que consomem aos poucos pessoas maravilhosas, e àquelas que vem e levam de um dia pro outro. Da vida, a única certeza é a morte, e somos obrigados a aceitar, a conviver, e a chorar nossas perdas. 


No entanto, ainda há que se acreditar no amor, na casa e no lar, nosso porto seguro, nos abraços que confortam, nesse amor cúmplice que move o mundo. Não se pode negar aquilo que de certa forma é nossa essência.

Conheço Marinalva há 5 anos. Muito alta e com um corpão de chamar atenção. 51 anos de elegância, porte, vida. Tudo que ela fez na vida foi cuidar da família, sobrinhos, irmã, pouco tempo tinha para a própria saúde. Lilia que a orientou a se cuidar, a fazer o plano, a cuidar dela. Mas Marinalva não deixava as cores das roupas, os brincos extravagantes, o sorriso. Coisas de quem gosta da vida. 

Em outubro ou novembro do ano passado, eu estava de férias, e ela apareceu na creche no maior alto astral de todos os tempos. Estava apaixonada. Seu suor era pura manifestação de felicidade.. Ela havia encontrado o homem da sua vida( surreal). Em semanas a paixão- aquilo que nos movimenta, não julguemos jamais - levou com que eles se unissem, e foram morar juntos na casa de Marinalva. 

Nunca vimos nossa negona tão feliz. Em janeiro, mesmo no recesso quis celebrar seu aniversário conosco na creche, porque queria celebrar sua felicidade. Ela foi vestida com uma camisa com a foto de seu amor. Disse que ele também estava com a camisa com a foto dela. Era algo do tipo: sou dele, sou dela. 

Ela fez declarações de amor e felicidade. Fez toda a comida em sua casa, e levou para a creche. Ela de fato celebrou o amor.

De dois meses pra cá Marinalva estava quieta, de um jeito que a gente conseguia notar. Não falava mais de seu amor, mas não questionamos, respeitamos o silêncio.

Sexta-feira, dia 29 , último dia de trabalho na creche ela comemorou comigo meu aniversário. Como saberíamos que seria a última vez que nos veríamos.

Na segunda ela foi vista na rua pela última vez. Quinta lá pelas 23, Débora me ligou dizendo que tinha polícia na porta da Marinalva, que estavam falando de assassinato, mas Débora n queria crer. Pediu que eu ligasse pra ela. Tive medo. Liguei pra Mônica, enquanto Débora voltava lá. E a voz de Débora, dizendo que era ela, jamais me sairá da cabeça, Falei com Mônica, falei com a Elisete, e toda nós na creche estamos ainda em choque. Ela tão forte, tão guerreira foi nocauteada por um covarde que ela amou; Ele covardemente ceifou sua vida à marretas, e enquanto seu corpo lá permanecia, ele continuava a vida, saindo e entrando da casa, até que a falta dela não fosse mais consentida.

Crueldade que não cabe em mim. Deus nos dê forças para prosseguir diante de coisas que não entendemos. Diante dessa dor que leva conosco parte da nossa vida, e nos mata também. Deus nos dê fé, nos apoie. Que nos apoiemos. Deus conforte sua família, a quem ela tanto amava. Deus ajude sua irmã, que ela cuidava. Como me disse uma mãe da creche ontem, que a gente procure um conto de fadas e conte para as crianças quando dissermos que a tia Marinalva não vai voltar.