segunda-feira, 10 de abril de 2017

Humanizar – Oito dias em um Hospital Público

Pelos olhos de uma acompanhante



            Outro dia fazendo compras no Centro da cidade do Rio de Janeiro, me senti mal, tonta e pareceu que teria um desmaio. Pensei em comprar uma água em outro comércio, mas como já me encontrava dentro de uma loja e na fila para pagar, resolvi permanecer e pedir ajuda à moça que estava no caixa. Ansiosa pela minha vez, coloquei os produtos da compra sobre o balcão e disse que estava passando muito mal, que estava tonta e se ela poderia  conseguir um copo de água. “ Aqui não tem água não. Se quiser compra lá fora. ”  Deixei os produtos sobre o balcão e saí da loja. Sentia tonteira e uma vontade de chorar tão grande...  É difícil escrever, porque tantas coisas fazem com que eu queira chorar. Quanta frieza de um modo geral em todos os sentidos.  
          Semana retrasada, enquanto eu estava numa farmácia em frente ao Pronto Socorro de São Gonçalo, uma menina passou mal em frente ao caixa, exatamente como tinha acontecido comigo dias antes.  Eu estava na fila também. Assim que a funcionária percebeu que a cliente não estava bem rapidamente gritou para a colega do balcão para que trouxesse uma cadeira. A cadeira veio rápido, e também um copo de água e uma revista que serviu de leque. A menina ficou sentada, bebendo o copo de água que lhe foi servido, e sendo insistentemente abanada pela funcionária. Olhei aquilo tudo e refleti comigo mesmo que o mundo não estava perdido, e que todo o bem e mal estão exatamente na mão de cada um de nós. Esse episódio da farmácia foi apenas um dentre tantos paradoxos que presenciei na semana do carnaval enquanto fui acompanhante no Hospital de São Gonçalo.

       Estou  ha quase um mês para escrever este relato mas as emoções  foram tão fortes que não conseguia  trazer a tona as palavras para descrevê-las, e na verdade nem sei se  sou capaz. Eu já tive experiência em internações em hospitais públicos e particulares. Com meu filho foram muitas vezes, no entanto embora o sofrimento tenha sido grande, o meu olhar de mãe estava focado no problema do meu pequeno. Também há 19 anos atrás acredito que os hospitais estavam castigados, mas nem tanto quanto agora. 

   Neste Carnaval estávamos eu, família e amigos em uma ótima casa de frente pro mar , vivenciando dias aguardados. Num acontecimento imprevisível, Lucio sofreu um acidente de moto. Acho que só quem já  recebeu a notícia  sobre um acidente, entende o desespero de um telefonema como esse. Você só quer chegar ao local, você só quer ver ,tocar, ter certeza que as coisas não saíram tanto dos planos.



   Na correria em busca de hospital, terminamos encontrando o Hospital de São Gonçalo. Foi realmente pronto atendimento, mas era semana de Carnaval e  o especialista só chegaria na segunda seguinte. A  partir daí aprendi, chorei e conheci pessoas que deixaram marcas que jamais se apagarão.
Os episódios são tantos, entre pessoas de bem e pessoas frias que prefiro fatiar os relatos.

Tomada


   Enquanto eu desesperada, esperava no hall de entrada notícias do Lúcio, tentava manter algum contato com ele, que estava na enfermaria ou fazendo exames. Eu não podia entrar. Meu celular ficou sem bateria, e precisei urgente de uma tomada... Avistei 4 tomadinhas, que acreditei ser exatamente para os pacientes e acompanhantes.. Estavam todas desocupadas. Ao plugar meu fio, e conectá´-lo a tomada, a atendente falou em alto e bom som: Não pode não, viu? aí é só para o uso dos nossos tabletes .
Regras? 
Não estava sendo usado por ninguém. 
Retirei meu celular... chorei. Quanta insensibilidade.....
Humanizar?





"A medicina humanizada é um conceito bastante falado e reverenciado. Uma relação mais próxima e humana entre médico e paciente é, com certeza, o caminho certo a seguir na medicina. Mas colocá-lo em prática tem sido um desafio para muitos. Alguns ainda desconhecem o sentido real no dia a dia.

Quando se ouve o termo, a ideia associada é de tempo e proximidade: consultas mais longas, olho no olho, ouvir o paciente com respeito. Uma conduta mais humana, em que se estabelece uma relação de cumplicidade.

A medicina humanizada, no entanto, extrapola o atendimento que o médico realiza na sua sala com o paciente. É algo muito além, que começa antes da pessoa entrar na sala e continua com sua saída.

Trata-se do atendimento global, de forma eficaz e resolutiva. É o respeito à condição do paciente e, isso – é importante frisar - não é responsabilidade apenas do médico. Já começa no agendamento e no recebimento daquele caso.

Na medicina humanizada, prioriza-se o atendimento completo e ágil, que engloba a consulta, encaminhamento para exames, diagnóstico, o tratamento e o pós-tratamento.

É tratar e acompanhar o paciente como um todo, com o suporte de uma equipe multidisciplinar, integrada e competente. Faz parte deste respeito facilitar a vida da pessoa, tornando possível, por exemplo, realizar todos seus exames no mesmo dia, o que reduz encaminhamentos e retornos desnecessários.
O pós também faz parte deste compromisso. Em caso de encaminhamento, é referenciar e acompanhar todo o pós-tratamento, até a resolução. Não basta sorrir, saber o nome do paciente, olhar nos seus olhos, mas ao se despedir no final da consulta - esquecer por completo aquela pessoa. "
Fonte> Hospital Sírio Libanês - Internet

Enfermaria 1 



    Esta é a enfermaria que ficaram os pacientes antes de serem levados para suas devidas enfermarias de tratamento especializado.  Mas como era carnaval... Aguardamos. Lucio no acidente quebrou o punho e uma costela. Nesta enfermaria, que ficava próxima ao pronto socorro, estavam com Lúcio umas 9 pessoas, num espaço muito pequeno, de camas quase coladas... Enfermidades variadas, 3 pessoas com bicheira, que exalava um cheiro forte de podre e tristeza, um senhor como fêmur quebrado , que também tinha Alzheimer numa cama sem contenção, então era preciso amarrá-lo para que não caísse,pois em sua condição , achava que poderia sair. Havia um simpático rapaz usando máscara , soro positivo mas naquele momento com suspeita de tuberculose, um menino que havia quebrado a perna num jogo de futebol e uma senhora que também havia caído e quebrado o braço.


Eu e Lúcio


    No hospital havia alguns enfermeiros que faltavam dar a vida, outros que preferem terminar logo o plantão para se livrar dos que precisam.

     Quem tem acompanhante, tem sorte, muita sorte!



Comida vem, comida vai....


     Há muitos idosos sozinhos, pessoas que vem de abrigo ou moradores de rua. Há também pessoas que não tem mesmo quem fique ou os visite... Pessoas com doenças que impedem que possam se sentar- muitas, precisam da sorte do acompanhante de outras pessoas, serem solidárias e as alimentarem. Não que haja, na maioria das vezes, má vontade dos enfermeiros, mas o que vi, eram 30 pacientes por enfermeiro, o que impossibilita realmente que cuidados como comida, água e troca de fraldas sejam realizados nos momentos de real necessidade dos pacientes. A medicação fica em primeiro lugar.... 
Mas, há fome, sede, e desconforto de ser um adulto e ter suas fraldas vazando. 
Fora as consequências destas situações. 
Humanizar?


L - Suspeita de Tuberculose

    L. é um rapaz de olhar bondoso. Ele tinha superado os piores momentos no tratamento de HIV , e seu médico praticamente o havia liberado dos coquetéis (história contada por ele e por sua irmã). Infelizmente foi surpreendido pela  suspeita de tuberculose; Tossia e escarrava muito.  Mesmo estando perto de nós, e ao lado da cama de Lúcio, ele era de uma companhia que fazia as horas passarem de forma mais gentil, Com máscara se solidarizava com outros pacientes e mesmo muito debilitado pedia ajuda para os outros que percebia estar precisando. Ele foi cuidado por uma irmã amável, prestativa, carinhosa.... Quando a gente está paradinho num quarto de hospital,o mundo todo pausa lá fora e é possível que novos olhares se formem, e enxergamos o ser humano como ele é, e como precisa do outro. L tinha muitas histórias e àquela vivenciada perto de nós, era apenas mais uma história de guerra, que com sua solidariedade e força também haveria de vencer.


Senhor Amor

       Sr Amor estava no leito bem à minha frente. Quando chegamos ao hospital, ele já estava lá e sua situação causava curiosidade, pois tinha a cabeça enrolada em faixa. Com o passar das horas e  dos dias, fomos conversando, assistindo seus curativos, compreendendo uma parte de sua vida. 
     Sr Amor havia passado por uma crise depressiva por conta da morte de sua esposa, e depois disso, iluminou-se com novo amor. Infelizmente um dia ao voltar do trabalho, sua residência estava vazia. Sua companheira havia levado tudo que tinha na casa. A depressão veio com tudo! Passado isso, ele machucou a cabeça, segundo ele, um galho caiu na sua cabeça. O machucado era quase na nuca, e ele não cuidou. Os cabelos fartos esconderam o problema e quando se deu conta, havia buraco e bichos. Assustado, correu para o hospital, sozinho. Do jeito que entrou, ficou. Sem roupa de cama, sem outras roupas, sem visitas. 
     Uma senhora deu um lençol com o qual ele cobriu o plástico preto (usado para cobrir defuntos) . Sério, tinha aquele ziper por baixo... Um horror! A primeira noite não dormi tamanho meu frio e também pelo vai e vem e choros da madrugada, que só quem passa por um pronto socorro de grande porte sabe do que estou falando. Eu estava com minha cobertinha e o frio era cortante, mas o senhor Amor estava encolhidinho, gemendo de dor , e assistir sua dor cortava meu coração. 
      Falei com minha amiga e companheira de trabalho, Lilia Martins,  sobre esse senhor, e não eram 9 da manhã , ela estava na porta com um edredom pra ele. Ele chorou quando entreguei pra ele. Incentivada pelo gesto da Lilia, fui até a loja de frente e comprei um travesseiro e uma toalha. Uma senhora, que acompanhava seu pai trouxe roupas e um kit higiene ( escova, pasta, lâmina de barbear). - O amor é contagioso.  - Senhor Amor arrumou seu novo leito, estava acolhido! Quem não precisa ser acolhido, talvez não seja necessário o amor, mas a compaixão, a solidariedade, o acolhimento que faz com que a pessoa se perceba importante, que ainda lhe resta dignidade.
     O leito dele estava melhor, ele pode tomar banho e trocar de roupa, mas sua dor permanecia. Bom, não possuo nenhum curso na área de saúde, mas sei reconhecer quando alguém precisa de cuidados. Ele tinha o que se chama de "bicheira" na cabeça. Tinha um buraco lotado daqueles bichinhos que aparecem em lixo, e eles comiam seus tecidos, e sangrava. O curativo dele era feito com muito adiamento pela manhã. Quando as enfermeiras se aproximavam , mas parecia um espetáculo de horror, que o constrangia e ofendia, pois havia um odor forte e ruim, e os acompanhantes dos doentes se ausentavam, de tão forte o cheiro. 
     Acredito que por ser um ferimento daquele porte e numa área que inspirava cuidados ainda maiores, o curativo deveria ser feito pelo menos duas vezes por dia. Quando a noite chegava, seu leito estava sujo de sangue e a inquietação dele nos deixava aflitos. Sentia dor e os bichos se mexendo em sua cabeça. 
      Letícia, enfermeira, que falarei um pouco depois, lhe comprou ivermectina, e ele chorou quando ela lhe trouxe,, comprado com dinheiro da própria enfermeira que também não suportava seu sofrimento. Nesse momento, sr L. , levantou-se do seu estado cansado, e abraçou sr Amor, e os dois choraram. Registrei o momento, um instante humano, de gente quando se percebe gente, de homens que reconhecem sua condição de pó, e da importância do cuidado do outro.  



    Alguns ensinamentos somente um hospital pode transmitir, mas na verdade, há pessoas que nunca aprendem. 
     Na noite em que tomou a medicação, Sr Amor dormiu esperançoso de sua melhora, mas na manhã seguinte ele caiu em prantos quando foram fazer seu curativo. Eu também não costumava ficar na enfermaria quando ele fazia o curativo, não pelo cheiro, mas pela vergonha que ele tinha desta exposição. No entanto, nesta manhã, ele me chamou chorando, Ruteeee, ele gemia, vem aqui....  "Olha, os bichos não morreram, eles tão se multiplicando, e elas disseram que vão fechar assim, porque não tem pinça pra tirar."         Senhor L., me perguntou desesperado: "Você tem coragem de olhar?" "Tenho" respondi. Respirei fundo, e ele abaixou a cabeça para que eu pudesse ver. Um misto de tristeza, náuseas, e compaixão tomou conta de mim. O tipo de coisas que não se esquece. Não só pela dor, mas pela negligência diante da dor do outro, da falta de humanidade, de governo, gerência... Era grave! 
Pedi pra ele  autorização para fotografar e ele permitiu. Eu mal conseguia segurar o celular de tão nervosa. Ele pediu pra ver, e eu não queria deixar... Ele insistiu e mostrei. Ele baixou a cabeça e chorou, dizendo que estava sendo comido vivo. Nisso, a enfermeira retornou, e realmente fecharia daquele jeito. Eu pedi para esperar que eu compraria uma pinça. Há uma loja de materiais hospitalares bem em frente ao hospital... 
     Fiquei nervosa, levei o celular , e comprei a pinça cirúrgica. Voltei correndo, e quando cheguei, a enfermeira retornou com uma pinça dizendo que tinha encontrado uma. (!!!!! ??????) Meu Deus! É para acreditar que não queriam limpar sua cabeça? 
       Na mesma manhã ele recebeu alta. Alegaram que ele seria melhor cuidado no posto de saúde próximo a sua casa, que entraram em contato com a Assistência Social de seu território, que iria receber bolsa família e ajudas, enfim....  Como disse, eu não sou especialista , nem  curso tenho na área de saúde, mas no meu entendimento, ele não poderia receber alta naquelas condições. Sim, ele precisaria de cuidados, e de assistência mas depois de ter sua situação de saúde mais estabilizada. Ou não, eu to errada? Nem que ele quisesse ele poderia cuidar de si mesmo, pois não dava para enxergar seu próprio machucado. 
     Nas conversas sussurradas nos corredores, entre os leitos,  as pessoas comentavam que ele era sujo por ter deixado sua situação ter chegado a esse nível, que tava sofrendo por que permitiu. Talvez eu não seja mesmo como a maioria das pessoas, e por isso sofro mais. Não importa se ele foi sujo, não importa o que levou ele a chegar naquela situação. Todos pagamos impostos para que possamos ter um atendimento de saúde no minimo digno. 
    Será mesmo que apenas me relaciono com pessoas felizes, que nunca viveram momentos de crise, que nunca deprimiram? Meu Deus do céu, somos todos humanos e nosso corpo é feito da mesma matéria que a do Sr Amor. Se não cuidarmos, se não cuidarem, apodrecemos ainda em vida... Porque as pessoas se sentem tão blindadas? Porque acham que a adversidade nunca virá? Porque chutar quem já se encontra com a boca no chão ? Porque arremessar ao abismo aquele que  já se rendeu?
     Encontrei o SR Amor quando voltava do meu lanche na hora do almoço, ele do lado de fora do hospital agarrado ao edredom que Lilia havia lhe dado e animado com suas "novas chances" que o assistente social lhe havia dito que teria... Nos abraçamos, e desejei sorte. Há outros acontecimentos sobre a história do Sr Amor, que fazem parte de sua história que guardarei para mim... 
    Desculpem a postagem da foto, mas somente com ela, você que lê poderia ter a dimensão deste texto. 




  Michele

     Sabe aquelas pessoas que entram na sua vida de repente, e fazem toda diferença? Conheci Michele no trabalho dias antes do acidente . Ela fazia parte do grupo de trabalho no zap e soube do que aconteceu. Desde então não mediu esforços para estender os braços. Dirigiu o carro do Lúcio, colocou no estacionamento, trouxe o cobertor, lençol, roupas, casaquinhos. Depois trouxe de novo, e ia  no hospital só pra me ver.... Caramba, tem gente especial na terra, e por elas que a vida vale a pena! Quando se está num momento de fragilidade, tudo vira pouco e o pouco se torna muito. Um carinho, um colo.... O que chorei quando abracei Michele no segundo dia que passei naquele hospital, acho que nenhum amigo viu.  Gratidão eterna.


 Leticia

      Leticia é enfermeira e tocou meu coração de várias formas. Ela virou 2 plantões, o que acho que deveria ser proibido, mas precisa-se, visto o salário, a quantidade de plantonistas.... Letícia era incansável, correndo, atendendo, não dando conta de mais de 30 pacientes sob sua responsabilidade. Foi ela quem comprou o remédio para o senhor Amor, quem subia e descia as escadas, quem acalentava e usava de uma sábia paciência  diante dos pacientes nervosos, indignados e cheios de dor. 
    Ela não se negava, pedia para aguardar e voltava.             
    Quando um enfermeiro é assim, é ainda mais cobrado, todos o querem, todos apelam, os doentes parecem tocar nas vestes de Cristo. Um socorro, uma água, uma troca de frauda, o soro que acabou, o analgésico, a sonda que já encheu, a agulha que saiu da veia.... Letícia estava exausta mas não desistia.
    Na madrugada do segundo plantão, um pouco antes de amanhecer fui ao banheiro da enfermaria feminina,  e ao sair tive a certeza que há pessoas que fazem deste mundo um lugar que ainda pode ser habitado. Letícia acalentava uma senhora em seu leito, acariciando seus cabelos , e dizia sussurrando: "Tudo vai ficar bem, vai passar...." e fazia sons de quem tenta ninar um bebê. 
Humanizar.... 


Senhor Isabel


       Dei a ele este codinome pois era o nome que este senhor chamava sem parar. Ele era um senhor daqueles  bem velhinhos, mas tinha uma força e tanto! Seu filho parecia ter muito carinho por ele e pagava acompanhantes para ficar com ele em sua ausência.
    Ele tem Alzheimer mas estava lá porque havia caído. Segundo uma das acompanhantes e vizinha do paciente, o filho esqueceu a portinha que levava ao terraço aberta, ele subiu e na hora de descer caiu. Fraturou o fêmur e portanto precisou da internação para cirurgia. O problema era que o Senhor Isabel queria sair da cama, e por mais que o filho e acompanhantes solicitasse leito com grade , até o dia em que saí não havia sido atendido. 



      Para que ele não descesse, e caísse ao invés de leitos com grades, contiveram suas mãos e  amarraram seus braços.  Sim, ele estava nervoso, estava fora do local que estava habituado, numa enfermaria agitada 24 horas por dia, e amarrado. Ele xingava todos os palavrões, tentava sair da cama, e machucava cada vez mais seus braços. Quando pedia socorro, pedia para Isabel, sua esposa falecida há mais de uma década . À noite, ele passava todas as horas gritando pela Isabel.
                                                             "Me socorre Isabel
     Quem foi Isabel pra ele? Ele a amava enquanto estava viva? - As pessoas perguntavam.
    O que eu pensava era sobre a vida, e o quanto valemos apenas enquanto produzimos.  As coisas boas, as histórias do Sr Isabel, onde estavam agora? Era penitência precisar ser amarrado. Não há nenhuma outra opção? Não há? Poderiam ter poupado o senhor daquelas amarras trazendo pra ele uma cama com grades mais altas. Ou não? Poderia não ter mais leitos assim.... OK.  E para onde foi o dinheiro destinado aos leitos?
 E as questões de todas as formas se multiplicam. Já não basta a dor e complexidade do Alzheimer, ainda há que se ajoelhar pra um tratamento respeitoso, decente e próprio.


 Dona Linda!

     Eu e Dona Linda nos conhecemos no primeiro andar, e firmamos nossa amizade no segundo andar, quando Lucio estava na enfermaria ortopédica masculina e ela na feminina.      O quarto dela era o último do longo corredor, pequeno e com um banheiro quase completo, de chuveiro quente (um luxo!) rs . Eu ia assistir Big Brother com ela, e tomava banho naquele banheiro tão bom! As vezes de manhã tomava café quentinho que o SR Amigo (falarei dele mais tarde) trazia. Toda hora a visitava, ela me chamava atenção pelo seu sorriso com batom rosa, seus brincos cumpridos e sua camisola de seda. Sempre qu chegava eu dizia: Nossa, como está linda! E ela sorria. 
Dona Linda estava lá por ter fraturado a bacia, e falava muito de sua filha. Nos oito dias que lá estive, não  a vi visitá-la. Dona Linda beijava sua pulseira, que segundo ela, fora um presente da filha, que havia sido presenteado por seu grande amor já falecido. 




     Gostei muito de conhecer Dona Linda, e lamentei sua solidão.


Casal 20

       Como poderia esquecê-los? Senhora Amizade caiu em casa e quebrou o braço. Também estiveram conosco na enfermaria do primeiro andar. Seu marido, senhor Amigo, estava presente a maior parte possível do tempo, e só saía quando sua irmã chegava ou um de seus filhos. São evangélicos, mas não daqueles que falam, mas daqueles que mostram. Ele ia de leito em leito abençoar os doentes, não com orações, mas com um jeito especial, carinhoso de falar. No olhar dele havia o amor de Deus. Eles estavam casados há 30 anos, e me mostraram fotos do inicio da construção de suas casas, de seu terreno cheio de árvores frutíferas, da história de seus filhos, das lutas e do amor. No dia em que fomos embora ele me disse: "Querida, a vida passa muito depressa mesmo. Ame agora, viva agora, porque você pisca os olhos e a vida passou.", dito isso foi se despedir do Lúcio; Eu não vi esse momento, mas Lúcio disse que ele beijou sua mão, e ele correspondeu, beijando a sua. Ele explicou ao Lúcio que aquilo era ósculo santo, beijo entre amigos, entre irmãos; 



       O casal nos convidou para visitá-los, a ir em sua igreja, almoçar com eles. Mesmo nas maiores adversidades encontramos pessoas especiais. Basta se dar conta disso e agradecer.


Não vou Limpar!

       Já no segundo andar, ala ortopédica masculina, havia senhores, três bem doentes, que não podiam se  movimentar nem ao menos falar. Um deles tinha acompanhante durante o dia, um era do abrigo e algumas vezes tinha acompanhante e um deles, nenhum.  Houve uma manhã que a bolsa coletora de urina conectada a sonda estava vazando, algo aconteceu que a urina se espalhou pelo quarto. Fui chamar a enfermeira, que me mandou ao almoxarifado falar com a equipe de limpeza. Quando comecei a dizer que a enfermeira me mandou lá, os gritos se fizeram ouvir. Enquanto uma dizia que não era seu plantão, que tinha chegado naquela hora, a outra dizia que não limparia nada porque não tinha produto nenhum pra limpar.
Voltei a enfermaria e repeti o dito. Durante mais de uma hora nada foi feito.
Humanizar?


Sobrecoxa!

     Como você come coxa de frango em casa? Eu como com o garfo  e a faca ou com a mão. Mas se estou com apenas uma mão, ou com os braços enfaixados a coisa se torna mais complicada! Foi o que percebi com mais clareza quando Sr Gentileza jogou a comida fora.
     Só me deixa explicar que o Sr Gentileza era aquele senhor que não queria incomodar, de uma gentileza solene, composta de uma educação que não se vê. Ele estava com o braço quebrado mas tinha alguma dificuldade para andar. Ele era muito reservado e não falava muito. No inicio, até achava que ele não falava. Quando percebia que ele precisava de alguma coisa, me oferecia, pois não pedia, e eu brigava com ele, avisando que ele podia pedir.... Por exemplo, quando ele queria ir ao banheiro, e não alcançava o chinelinho, ficava olhado e arrastando o pé para tentar calçar sem pisar no chão.... Ou quando a enfermeira veio buscá-lo para a tomografia, ele saiu na frente porque queria abrir a porta para ela passar. Um fofo...  
    Então, no dia da alta da Lúcio, quando veio a quentinha do almoço (momento mais aguardado do dia de um paciente) veio macarrão, feijão e contra coxa do frango daquela bem sequinha.... o garfinho de plástico de sempre.... abri a quentinha pra ele, pois com uma mão só não dá; Ele olhou pra comida, e perguntei se ele queria que eu desse na boca dele. Ele negou e pediu ajuda para descer da cama, já que estava segurando a quentinha com a mão que não estava engessada. Observei ele caminhando até a lixeira e jogou toda a quentinha fora. De cara, choquei, mas entendi que era impossível ele comer com aquele garfinho macarrão e o frango. 
      Novamente ressalto, não sou nutricionista mas meu bom senso repete insistentemente que para pessoas que não estão podendo usar as mãos deveria haver um cuidado especial, principalmente porque a maioria não tem acompanhantes.
Humanizar?


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      Muitas coisas aconteceram no hospital, e esta é a segunda vez que escrevo  o post. Na primeira vez, perdi tudo numa queda de luz.... mas não desisti e escrevi novamente, certamente faltando detalhes da primeira escrita.

      Tenho a dizer que certamente há situações que fogem aos enfermeiros, aos médicos, mas o tratar com afeto e respeito é dever de todos. Vão me dizer que afeto não cura, correto, mas alenta. Quanto a gerências somos culpados por nossos votos, nossas escolhas, nossa falta de saber o que fazer, e não tenha dúvida, nós colhemos os erros dos nossos votos equivocados. 

      Aprendi nestes dias, que mesmo diante do caos, o bem pode ser feito, e também que há profissionais que já desistiram, se revestiram de uma armadura sei lá de que, e esquecem que diante deles há pessoas feridas, doentes e que ainda que não possam se expressar com o som da voz, ainda que não possam se levantar sozinhas para ir ao banheiro controlando suas necessidades fisiológicas merecem e tem direito ao respeito, a dignidade, a saúde.

      Meu texto poderia se estender ainda mais..... mas deixa.... Preciso dizer que a equipe de cirurgiões da ortopedia é dez, que tratam com seriedade, respeito e cuidado seus pacientes. A eles, gratidão e sorte pois não deve ser fácil !


Aos que conseguiram ler até aqui , quando puderem, façam uma visita a um hospital público. 
Leve livro para uma criança, conte uma história, leve palavras cruzadas, uma bíblia, ou então leve só você mesmo...  Converse, ore, faça um carinho no cabelo.
Cobertor, garrafinha de agua, roupas limpas...
O hospital é um lugar cheio de pessoas e que transborda solidão. Tenha certeza que esse bem que fará trará os olhos do Senhor até você.


 Obrigada a Monica, Lilia, Fernanda Tchuca,  Michele, seguranças do hospital Grandão e Marrentinho( me trataram feito gente), meninas do quiosque da frente  do hospital, aqules que traziam café quentinho para os acompanhantes, a Claudio e Cristina - irmãos que jamais esquecerei, e aos anônimos que nos dão a coragem e a fé de que o mundo apesar de todo o caos ainda se aquece pelos corações repletos de amor.


































3 comentários:

Quiteria disse...

Muito importante seu relato. Todos sabemos o caos que a saúde vive, e o sofrimento de quem está ali, inerte numa cama dependendo da boa vontade alheia. Ressaltar os gestos de amor de cada um; pacientes e funcionários da saúde nos faz enxergar que é no caos que pequenos gestos fazem uma grande diferença.

Neilda, Rioeduca - 8ª CRE disse...

O pior é saber que essa história não teve fim... ela vai se entrelaçando em outras novas e tristes histórias... quando minha sogra agonizava pela metástase de um câncer, eu também estive em um hospital público até o dia de reconhecer seu corpo no necrotério do hospital... experiências inesquecíveis e que realmente mudam nossa maneira de encarar a vida!
Que bom que compartilhou! Bjs

Carolina disse...

Rute! Só hoje (nesse momento) vi seu blog e comecei a ler sua passagem pelo Hospital com seu filho!!!
Quase um ano depois, ou mais!!!!
Como estou afastada do mundo...
Como está seu filho?
Como você está?
Acabo de lembrar que não tenho em mãos nenhum daqueles cartões que brincávamos tanto, quando você distribuía!
Li apenas o início, quando vi você sentada no chão e quando foi comprar a pinça para limpar a cabeça daquele senhor.

Meu Zap é 21 993213293
Igual ao telefone.

Me dê notícias, por favor!
Amanhã vou procurar você no Twiter!

Beijos, com carinho e saudades.