sábado, 26 de outubro de 2013

Avenida Presidente Vargas - Histórias que se Cruzam



Essa noite meu pensamento não está em mim, nas neuroses que provoco, nem do sofrimento que julgo já ter passado... Hoje o assunto é muito mais importante, urgente, desesperado.

Estava na Avenida Presidente Vargas, uma das mais importantes da cidade do Rio de Janeiro. Atualmente é palco de manifestações de todos os tipos, uma luta que apenas começou.
A Avenida Presidente Vargas exibe sua riqueza e majestade , mas nela milhares de histórias se cruzam.

 Estava atravessando uma das 4 pistas da Avenida , quando minha história se cruzou com a de Rosiane. Eu estava esperando o sinal ficar verde para os pedestres, quando vi uma menina atravessando  no meio dos carros. Claro, procurei em volta sua mãe. Alguém!!! Pois no meu mundo, esse que ainda acredito, crianças não andam sozinhas pelas ruas, nem atravessam a Presidente Vargas sem darem à mão pra algum adulto. Os carros desviaram dela. Quando a menina assustada chegou perto de mim sentou no meio fio, cansada.

O sinal abriu e as pessoas atravessaram. Eu não consegui. Que desespero ver aquela menininha perdida, sozinha, que quase foi atropelada!!!!

_ Cadê sua mãe? - essa não é a pergunta clássica que se faz à uma criança perdida, sozinha?
_ Morreu.
_ Morreu? - Pergunto eu, como se as mães não morressem, como se o mundo fosse mesmo justo e lindo pra todos.
- Morreu.
_ E você está com quem?
_ Sozinha?
_ Como sozinha? Você não pode estar sozinha. - Porque não entra na minha cabeça uma menina sozinha na rua, meu cérebro rejeita a informação.
_Onde você mora?
_ Na rua.

Só que a menina estava limpa. Embora de aspecto muito humilde, era notório que não morava na rua. Então, após insistir ela me disse que havia fugido de casa, da comunidade que vivia, pois a irmã disse que a devolveria para o pai que mora na zona oeste do Rio. Ela não queria voltar para o pai, pois o pai a espancava.

O sinal fechou e abriu várias vezes enquanto eu e a pequena conversávamos. O mundo parou ali, pois ela era o mais importante. Não importa como, onde e o porquê. Estava diante de mim uma menina, criança. 

Naquele momento, já tinha algumas informações. Eu poderia ter feito como as dezenas de pessoas que passaram por ela, e ter seguido meu caminho. Mas parei e perguntei. E agora? Dizia tchau? Deixava a criança atravessar as outras 2 pistas, sendo que ela nem sabia se orientar pelo sinal de trânsito?

Meu filho tem 15 anos, e é automático que minha mão busque a dele, quando atravessamos uma via como a da Presidente Vargas, ainda que ele não queira, é natural que eu faça isso. Mas, aquela criança estava desamparada.

_Vem comigo, que eu vou te ajudar.

Na hora que falei aquilo, só pensei que ela não podia permanecer no meio da rua. Logo achei que ela podia estar com fome, sede... enfim, o desespero tornou-se meu. Enquanto conversava com ela, de mãos dadas, sentia minha voz trêmula, porque estava emocionada. Eu não queria estar vivendo aquilo. Sim, eu sei que o Rio está cheio disso, que o mundo está imerso na violência contra as crianças, que "não vou salvar o mundo." mas algumas coisas ficaram em mim sobre o que aprendi sobre as Escrituras. Ela é o "meu próximo".

Compramos uma pipoca, e depois passamos pra comprar mate e pão de queijo. Enquanto isso, ela me contava sua história. Rosiane é uma menina adorável! Não está estudando no momento, mas sabe ler e escrever. Me contou o nome da tia da escola no tempo que estudava, sobre os bairros que morou, das vezes que fugiu de casa. Era a sexta vez que fugia, segundo ela. 

Ela contou que o pai a agredia, por isso veio morar com a irmã. Mas a irmã brigou, e disse que a levaria para o pai. A menina se assustou e fugiu. Foi quando a encontrei. Rosiane falou que a irmã a tratava bem, que trabalhava... mas que ficou com medo de ir no pai.


O tempo que conversei com ela, contei quem eu era. Falei que era professora, diretora de uma creche, e que a levaria para um lugar que a protegeriam. Que criança não podia andar sozinha, pois criança precisa ser amada e protegida. Falei que a rua era perigosa, e que podiam fazer maldades com ela. Ela escutava, concordava e no final dizia: "mas meu pai me machuca."

 Rosi, no conselho, depois que ficamos sozinhas na sala




Eu a levei para o Conselho Tutelar da Rua Sacadura Cabral. Subimos as escadarias, e assim que ela olhou a porta, me abraçou e disse que não entraria. Ela já havia estado lá com a irmã, pois já havia fugido.

O senhor que nos atendeu, Edmilson, foi solidário e nos encaminhou à uma sala. Eu disse quem era e pedi se podia ficar. Ele fez perguntas, e ela respondia, explicava. Achei curioso quando ele perguntou a data de aniversário, e ela ficou encabulada. Pra uma menina que sabia tantas coisas, não era possível que não soubesse seu dia de aniversário.

-É que tá errado, tia!!!

Então entendi o que ela quis dizer, ela nasceu em um dia e foi registrada em outro. 


_ Pode dizer o que você sabe?

Então ela disse, dia, mês e ano.

Tudo parecia ir bem, quando uma mulher chegou. Aos gritos. Vou repetir: Aos gritos!
A mulher não era um visitante, não era uma mãe ameaçada, nem uma adolescente em crise. Não sei o nome dela, porque não falou comigo, não quis saber quem era, não se apresentou. Mas trabalha lá e mandava!

_Eu conheço essa garota!!! Cadê sua irmã? -olhava pra menina
_ Essa menina=continuou ela - essa menina fugiu, ela não ´´e daqui, essa garota é Itaguara, é abrigo. Foge toda hora. Tem que ir pro abrigo!

O senhor saiu da sala. A senhora continuou: 
_Você sabe que você tem que ir pro Conselho de Queimados. Essa garota tem que se tratar!!! 

Doeu em mim. Imagina em Rosiane... Será que ela ainda sente?

__________


Foto que Rosi tirou de mim, com meu celular, antes de eu ir embora.


Este então era o veredicto que a senhora do conselho deu pra menina : Doença! "A menina tem que se tratar!"


Eu não sei... Sou professora há quase vinte anos. Nunca tive turma que fosse tranquila, eram crianças de comunidade, algumas delas com problemas muito sérios. Nunca gritei com elas.  O grito é algo que fere e não se justifica.  Hoje, quando as vejo, é uma emoção. Pra que o grito serve? Pra ameaçar, mostrar poder?Realçar autoridade?


Na minha cabeça, a menina precisa ser acolhida. Eu disse pra ela que lá era o lugar que as pessoas ajudam as crianças. Talvez olhar pra ela e perguntar: "O que houve dessa vez?" "Porque você fugiu de novo?" "Você tá bem?" 


Claro que entendo que o Conselho é um lugar que recebe todo tipo de crianças e adolescentes, inclusive infratores, meninos violentos... Tenho certeza que deve ser complicado. Mas quando se escolhe um emprego assim, sabe-se o que é. Não está satisfeito, procura outra coisa. Lidar com vidas, principalmente com a de  crianças e adolescentes com problemas, requer estudo, postura, ações mas me desculpem, é preciso mais, é preciso humanidade, solidariedade, amor, paixão, sede de mudança social, esperança na vida, compaixão.


Será fácil perder a mãe aos 8 anos, e ter um pai que espanca? Será fácil ver todas as crianças por perto indo à escola, enquanto você assiste sem poder ir? Será que é bom escolher à rua ao colo quente, ao abraço , ao conforto da família?


Fiquei pensando... Peguei Rosiane pela mão, e andei com ela cerca de meia hora pelo Centro da cidade. Fomos da Presidente Vargas, altura do Campo de Santana até a Praça Mauá, onde fica o Conselho. Eu simplesmente a peguei pela mão. Fui eu, mas poderia ser uma pessoa do mal, e ela teria ido também. Poderia ser agredida, vendida, e outras coisas terríveis, ou não?


As crianças pertencem a todos nós, e precisamos protegê-las.


Ninguém mais apareceu na sala onde eu estava com a Rosiane. Eu precisava ir. Ela segurou minhas mãos e pediu que eu ficasse. Pedi a ela um telefone, ela me deu  o de uma tia que morava na zona Oeste. Eu escrevi pra ela o telefone da creche que trabalho, e pedi que ela escondesse entre as suas cartas de brincar, guardadas em um saquinho. Era a única coisa que Rosiane levava em sua fuga. Um brinquedo de cartas. 


Abracei ela, e disse que ela poderia ficar tranquila, que logo a irmã dela iria buscá-la. Na verdade, foi realmente o que pensei.


Fui fazer meu trabalho, depois retornei a minha casa. Quando fui deitar, resolvi ligar para o Conselho. Como o Conselho fecha cedo, há um telefone disponibilizado para falar com o conselheiro plantonista. Edmilson atendeu e disse que a menina tinha ido para o abrigo.


Que bom que peguei aquele telefone com a Rosiane. Liguei pra sua irmã, já era 22h. Ela me atendeu, eu expliquei  o ocorrido e em conferência conversamos eu, ela e a irmã que ela morava. Ninguém avisou a elas.  Dei a elas as informações que tinha, o nome do abrigo, do conselheiro que nos atendeu.


Esse é procedimento padrão? É assim mesmo que se faz?
Elas não tinham que ser avisadas, ainda que a menina continuasse no abrigo?
Até os presos tem direito à uma ligação, não é? ou não!
Juro, não sei. To confusa, passada.


A menina só tem dez anos, e não oferece perigo.


Tenho meu pai, minha mãe, nunca apanhei, e tantas vezes, com meus 37 anos de idade, eu preciso de um abraço, colo. Porque uma menina de dez anos, com a mãe falecida e com o pai alcoólatra e espancador não precisa de um pouco mais de tolerância? Ela é mesmo um caso perdido, sentenciado, sem esperanças?


São questões...

Isso aconteceu ontem.
Ainda não liguei para as irmãs. 
Ainda não sei o que aconteceu com a pequena.


Criança está em primeiro lugar.





domingo, 20 de outubro de 2013

Drogas para Alma.


Não é um dia incomum, é apenas um domingo a tarde normal. Estou em casa com meu cachorro ao meu lado, ele dorme enquanto escrevo. A televisão está ligada a toa, e meus pés descansam em uma cadeira, o meu corpo está relaxado no sofá.


Não foi uma semana fácil, precisei lutar contra um desânimo eminente, e insisti na prática da esperança. Ainda assim, posso dizer que em vários momentos me permiti sorrir. Não julgo a pessoa, nem os motivos que fizeram com que eu me magoasse. Tenho construído a ideia de que não somos perfeitos, nem as relações, e que é burrice apostar em romances ideais, em pessoas sem defeitos. Viemos da terra e do pó, para lá tornaremos. Nossa caminhada é aprendizagem, desconstrução, reconstrução. Não somos santos, nem deuses. A capacidade de prever é limitada. Não somos, estamos. E portanto, a sabedoria clama que julgar não é solução. A chuva, o sol, as tempestades, os ambientes, livros, filmes e experiências afetam nosso comportamento, e aos poucos nos transformamos. Que bom! Seria péssimo nunca mudar de opinião, nem de estilo, de casa. Estamos.





Não posso ser hipócrita e me excluir da certeza de que todos, em algum momento da vida, falham. Imagino que com consciência ou não, magoei pessoas, até mesmo àquelas que me são caras. Isso inclui amigos e família. Já errei sabendo das consequências, já vacilei por motivos egoístas , por inexperiência, por escolhas equivocadas. Deste modo, sei que nessa roda gigante, também sou afetada. Muitas vezes sou magoada também.


Sinto, quero, planejo porém sei que ter meus sentimentos satisfeitos, meus desejos saciados, e meus planos concretizados não dependem só de mim. Não controlo. E assistir de camarote, planos se desfazerem como gelo, requer coragem. Coragem pra permitir sonhar de novo, planejar de novo, já sabendo que tudo pode se transformar em nada em menos de cinco minutos. As vezes basta uma conversa , uma visão para que tudo derreta.


Eu fui magoada. O meu sentimento não é contra o causador, nem contra a causa. Apesar da dor parecer subjetiva, e não ser possível enxerga-la nem com o mais avançado microscópio, a mágoa tem cor roxa, é um machucado da alma. Quando o roxo é no olho, no rosto, no corpo usamos compressas, remédios fabricados para amenizar a dor. Dor na alma também tem as drogas que tornam a ferida menos dolorida.





Tive remédios essa semana. Compressas mornas, massagens, carinhos. Abraços, palavras e chocolates. Amigos de longe e de perto, que  me dizem que tudo está bem, e me  passam uma confiança tão certa que de fato, chego a crer que há mesmo muita alegria para se viver.  E ainda que meu machucado lateje, se mostre presente, percebi que tem tanta gente maravilhosa perto de mim, que gosta de mim, do jeito que sou.


É difícil fazer reflexões quando a vida é puro fevereiro. A festa faz cegar os olhos, e influencia a percepção. É nas horas de perda,  que conseguimos alinhar expectativas e realidade, e olhar pra terras desconhecidas. A gente descobre resiliência, e aprende um pouco mais sobre humanidade. Quando apalpamos nossa fraqueza , entramos em contato com a matéria real que nos define, o pó das limitações. E a partir desse encontro, que gera fogo, e queima, mergulhamos no oceano de nossa capacidade de reconstrução.





A dor tem suas compensações. Ela nos torna melhores, mais fortes, e sábios. E o melhor disso tudo, pois não há mal na vida que não tenha seu lado bom, é perceber as pessoas generosas, gentis, que caminham comigo, nessa peregrinação misteriosa que é a vida.  Apesar  das mágoas que causamos nos outros, e das que os outros geram em nós, sou testemunha de que a vida é uma delícia, que tudo vale a pena.E que há surpresas escondidas, que quando encontramos é como banho de cachoeira no mais forte calor. Sim, mesmo no deserto podemos encontrar um oásis. E como é bom!


E que venham novos sonhos, novos planos, novos amores. Minha essência não me deixa perder o sorriso, nem a poesia. Ainda ando precisando de compressas mornas, mas logo toda a mágoa virará lembrança, e eu continuarei trilhando meu caminho.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Dor retrô



Você me esperou deitado na cama. Estava com sua calça jeans e cinto, não era seu jeito normal. 
Disse que precisávamos conversar.
Sabia,  antes de você dizer, que algo de errado havia. 
Muito silêncio, pausas estranhas nos dias anteriores.

Decidido, abriu a boca e liberou o vespeiro: disse que ia embora.
Fui toda machucada de uma só vez. Bum! 
Seguindo o clichê, perguntei se era outra, se não me amava mais.
Conforme o padrão, você negou. Deu explicações descombinadas, me olhava através e não pra mim. 

Recusou o toque que tantas vezes implorou, virou o comportamento do avesso.  Eu perguntava as mesmas questões, como se procurasse alguma resposta cabível que me convencesse.
A noite era silenciosa, lá fora. E de algum modo, fui vencida pela conformação nas primeiras horas. Me entreguei às suas falsas declarações rapidamente, fingindo ter levado um tiro de misericórdia, pra tentar fazer calar a dor. 

Então você começou o ritual macabro da separação. Pedi que fizesse em minha ausência, mas era nítida sua necessidade de sair daquele quarto, daquela casa, da minha vida o mais rápido possível. Abriu o armário e demorou uma eternidade guardando as peças. Um pouco fora de mim, ofereci uma calcinha pequena, uma que você gostava de me ver vestir, usar e tirar. Você não quis. Fez cara de "desnecessário" . Então peguei um livro meu e dediquei. Você aceitou.

Entretanto,com as bolsas e mochilas pelo chão, você acatou que era alta madrugada, e que melhor era dormir e ir no dia seguinte. Não tive ataque suicida, nem espalhei roupas pela casa, calei. Nos deitamos na continuidade de um ritual ainda mais sinistro. Você me abraçou de todas as formas, sua respiração queimava minha nuca, suas mãos deslizavam pelo meu corpo, e pairavam entre minhas pernas.Sentia sua excitação permanente, latejando contra meu corpo, mas apenas isso. Não houve despedida no sexo. 

Acordou e me beijou. Olhou meu corpo, desejou, mas apenas isso. Levantou dizendo que estava na hora de ir. Perguntei se era isso mesmo que você queria.  Tive uma crise de choro, perguntei porque você estava me colocando pra fora de sua vida. Antes , porém, que a minha dignidade fosse embora mais rápido que você, de novo calei. Ajudei com as bolsas até o portão. Voltei e vi que tinha esquecido o celular. Será que foi de propósito? Levei correndo pra você. Nos abraçamos, desejamos boa sorte como bons amigos. O portão se fechou.

É noite, e nem deu 24 horas meu corpo reagiu. Não gritei, mas meu corpo empolou, meu intestino desarranjou, e estou entre escrever e ir ao banheiro às pressas. Embora não seja dependente, nem tão frágil, confesso minha dor, essa que já conheço.

A idade, e as tantas desilusões criam casca grossa, e não abalam como antes. No entanto, há um processo interior que perfura, faz buracos na alma. Um lamento fino, porém profundo. Uma tristeza que está para além da perda. Olho por trás do ombro, revejo os passos que dei, e então percebo que mais uma vez, minhas pegadas são as únicas. Essa é minha verdade.

Atravessei tempestades fortes, e sei que a sua ausência não me matará. Ainda assim, não serei hipócrita para mentir que me sinto livre, que não sofro, que estou bem, melhor assim e etc. Eu sinto a perda, sofro, choro  e sei que vou chorar as vezes, mas vou superar mais rápido, mais sobriamente, sem excessos e sem maiores dramas. Vou lutar contra a tristeza na beleza do meu trabalho, na dança que me fascina, na risada do dia-a-dia, no abraço dos amigos, na doce voz do meu filho Vinicius. 

Continuo andando, para frente, claro. Sei que novos sorrisos, amizades e amores vão chegar. Outros modos de pensar, outras alegrias, outros beijos. De você, levo a lembrança doce do que foram nossos melhores dias. E venha o que vier, eu quero ser feliz.