segunda-feira, 10 de junho de 2013

Onde Ninguém Vê


Poderia ser um dia como todos os outros, mas não foi. Hoje, um pouco de mim morreu  pois vi o que ninguém vê. (ou vê?)







Meu trabalho me deu  hoje mais uma lição permanente. Tenho aprendido com minhas crianças,   através de suas falas, no seu modo de agir, e elas podem relevar grande sabedoria. Em 1997, tive forças para me separar  do ex marido após um projeto que fiz com minha turma de 4 anos . O projeto ganhou prêmio e foi publicado pela SME.


Em 2008, quando era gestora em uma creche na Comunidade no Tuiuti, Rio de Janeiro, vi um bebê de 2 meses sendo alimentado pela avó com água e farinha de mandioca em uma mamadeira de bico largo. Àquela noite não dormi, jamais esquecerei.


Sei que há mazelas no mundo por toda parte, doenças e sofrimento. Vemos pela televisão, internet, lemos nos jornais. Mas há situações vivenciadas que nos tocam profundamente.


Ando bastante envolvida com o projeto que desenvolvemos onde trabalho, e para levá-lo adiante fui conhecer melhor a comunidade que convivo. Não basta sentar e escrever, e dar metas aos outros. É necessário investigar. E desejei muito ver, pisar, sentir o solo daquelas famílias tão próximas a mim. É necessário se envolver, saber, pesquisar, ou como posso compreender as pessoas daquele local? Como preparar um projeto, e reunir pessoas se não sei quem são? Quem são as crianças da comunidade que trabalho? Como são as mães dessas crianças?

Então, começa-se a entender falas, vestes, choros, manias, doenças, alergias, odores... A gente começa a ouvir mais e falar menos. E então se inicia um processo interno de mudança. Chegamos a conclusão que pouco sabemos, ignoramos o próximo, não sentimos suas dores.

Vivemos encapsulados em nossas ideias e ideais, presos em nossas casas consumistas, abastecendo o  egoísmo a cada refeição. Ao lado, bem ao lado, pessoas sofrem, vivem de forma desumana, abaixo da linha da pobreza. E projetos continuam sendo escritos, do alto dos escritórios, no frescor do ar-condicionado, enquanto bem perto, a morte reina.

......


Resolvi ver aonde o valão dava. Quem eram as minhas crianças que ali moravam. Aquele lugar que sempre temi, eu precisei ver. Meu projeto pedia, minha consciência impelia. Assim, com a máquina de fotos digital na minha mão, e um "boa tarde" nos lábios, comecei a andar. Meus olhos estavam atentos, assustados a cada passo.






As casas que vi, foram construídas ao lado de um valão, erguidas com portas, madeiras velhas, restos das obras dos outros.






As crianças pequenas, bem miúdas, brincavam descalças  perto dos barracos e do lixo. Grande parte das moradoras, eram mães de pequeninos e estavam novamente grávidas. . Uma menina, de 15 anos, sentada em uma cadeira de praia, de sutiã e short exibia a barriga de 8 meses. Alguma escola na vida dessa adolescente? Não.



As casas não tem fogão. As mulheres cozinham na beirada do valão, colocando panelas em cima de tábuas e tijolos improvisados. Se fizerem no barraco, ele pega fogo. Então fazem perto do valão e ao lado do lixo. Pensei nas chuvas, no vento e no frio. Como fazem comida quando chove? E quando há tempestade? Com tantos pequenos ali, no meio do lixo...













Andei até o final, onde desembocava o esgoto/valão e lixos.












Desemboca aí, onde ficam os navios, barcos... sabemos onde.



Na volta entrei em algumas casinhas, conversei com as adolescentes e uma senhora grávida, que só tinha mesmo barriga. Para uma mocinha grávida e com um filho de um ano, perguntei com quem morava, ela disse que com o marido. Perguntei onde ele estava. "Catando lixo".






Estou falando aqui de um lugar no centro da cidade. Perto de tudo, longe de todos. Ali habitam pessoas invisíveis, abaixo da linha da pobreza, alienados do mundo e esquecido por todos.


Em um barraco estava escrito: "O Senhor é o meu pastor, e nada me faltará", e na verdade ainda estou absorvendo isso, pois quem é esta pessoa que no meio do nada, profetiza sobre si mesmo? De onde provém esta fé?






O dia cheio de coisas não me deixou refletir, apenas a sensação amarga de ter pisado o solo de ninguém. Ao sair do trabalho, o corpo reagiu, desgastado, fraco, o peito ardendo, uma vontade de chorar descontrolada.


Em casa me ocupei dos serviços, sendo visitada pelos flashes dos rostos daquelas crianças, daquela comida em meio ao lixo, daquele povo esquecido.


Não consigo dormir. Fico pensando em com ajudar, pois não posso ficar de braços cruzados quando o meu próximo agoniza. De imediato, roupas, lençóis, cobertas... E pedir ajuda a todos.


Se você que está lendo se solidariza, tem tanta menina grávida. Esses bebês vão precisar de ajuda.
Pode ajudar com parcerias? Doar alguma cesta básica? Porque não fazer?


Eu não sabia, mas agora sei, 
O lugar que ninguém vê, eu vi.



Pra quem ora, oremos pelo Caju. Por suas famílias, por suas crianças.


Um comentário:

Belá Branca disse...

Rute, tenho algumas roupinhas de criança aqui pra doação. Depois marco com vc pra levarmos pra quem precisa. Seu texto é como sempre primoroso, pena o assunto ser algo que não deveria mais existir. Minha primeira experiência no Caju, ainda no tempo de faculdade, foi muito marcante. Haviam crianças que nunca tinham entrado num banheiro com descarga e isso em pleno século XXI. Realmente triste.