Se prestássemos um pouco mais atenção ao que acontece ao nosso redor diariamente, e resgatássemos nossa sensibilidade à vida,
aprenderíamos muito mais. Até mesmo dentro da rotina , no caminho conhecido, há a
vida que brota, a chama que arde, o pássaro que ao lado agoniza...
Faço todos os dias o trajeto ao meu trabalho, pego o ônibus 474 e procuro sentar nos últimos bancos, ao lado da janela. Abro a bolsa, pego meu livro, minha caneta e deixo que o transporte encontre seu trânsito e me leve ao meu destino. Hoje, tudo estava igual até que fui abordada por um homem de aproximadamente 30 anos, alto , óculos de lentes grossas que me perguntou:
_Posso sentar ao seu lado, senhorita ?
_Claro, senhor.
Não foi uma atitude “normal”. O que seria normal? Um
estranho sentar ao meu lado, não notar minha presença, nem eu a dele. Eu e essa
pessoa ficaríamos ali eu lendo, ela escutando seu fone, e depois o vazio do desconhecido se estabeleceria.
Mas não foi assim que aconteceu nesta manhã. Eu continuei
lendo , e ele disse:
_ Você sabia que eu sou louco ?
Olhei nos olhos dele, e respondi:
_Todos somos um
pouco.
Ele perguntou se eu estava lendo sobre filosofia, eu disse
que era sobre educação. Mostrei o livro de Rubem Alves “A escola que sempre
sonhei sem imaginar que pudesse existir.” O rapaz leu um parágrafo,
acompanhando minha leitura. Depois me perguntou se conhecia Daniel Goleman, ele me explicou que era autor
do livro “Inteligência Emocional”. Relatou que era um bom livro.
Falei com ele, que conhecia o livro, mas não o tinha lido. E
enfim, desistindo de minha própria leitura, resolvi olhar pra aquele homem. Ele disse
que já havia sido internado em todos os hospitais públicos do Rio de Janeiro, e
que o médico disse que pra ele não tinha mais jeito. Eu respondi que conhecia
alguns hospitais, não todos, pois meu filho quando era pequeno havia passado
por alguns.
Ele respirou e mudou de assunto: Você sabia que já lutei
karatê? Perguntei porque ele não lutava mais, ele olhou para as suas mãos e respondeu
que seu mestre o achava bom demais e tinha medo que ele roubasse seus alunos.
Enquanto falava , me mostrava sua mão, e
pediu que eu notasse o quanto ela era grande. Eu percebia que as pessoas ao redor
nos olhava, pois o tom que ele falava era alto.
Após segundos, continuou contando que seu neurologista falou
que ele tinha síndrome de GA. Perguntei a ele como se escrevia,e ele soletrou G
A, e que significa a síndrome do apego. Que o médico disse que ele era apegado
demais. Eu afirmei que todos nós
sofríamos de apego, e que era fácil que nos apegássemos as coisas e às pessoas.
Hoje o trânsito fluiu bem e acabei chegando rápido para
pegar meu segundo transporte. Pedi licença ao moço com quem conversava, para
que eu passasse, e ele me disse: “Obrigada, senhorita, pela sua conversa e
companhia.”
Já está à noite, mas aquele rapaz e essa situação ainda
estão fortes em mim. Penso na minha reação, penso nele, penso no que senti
quando ele levantou a mão e me mostrou que era forte e lutava. Penso no que ele
podia estar sentindo enquanto me contava
que o médico disse que ele era louco, no entanto o homem tinha lido “Inteligência
Emocional”.
Será que eu tive medo dele ser "louco" e de repente me bater? Não
sei, foi tudo rápido... Eu desejei naquele momento, que ele soubesse que
poderia conversar comigo. Mas um outro
lado meu, estava alerta, e me questionava ao mesmo tempo dentro de mim que a antissocial era eu, que me
adequei à uma sociedade que não se fala, que reina em bolhas e que estranha
quando outro se aproxima.
É mesmo o outro um estranho?
É mesmo o outro um estranho?
Quando ele se aproximou para sentar, eu estava lendo sobre a
Escola da Ponte, e sobre o “desaprender” , lia sobre a história do Pinóquio ao
contrário, dos sistemas escolares que robotizam, e ali estava eu diante de uma situação
incomum. Mas eu queria que ela se tornasse comum... Pois na verdade, o que são
os loucos, e quem convenceu ao homem de que ele era um? Não poderia ser ele
apenas diferente? Alguém também disse que ele tinha a síndrome do apego, e eu
ainda não sabia da existência dessa síndrome, embora sinto o quanto sou apegada... Quantas coisas não sei...
Gostaria de ter conversado mais com ele, e não tive a
delicadeza de lhe perguntar o nome. Para onde ele estava indo ? Também não sei.
No entanto, ele me contou parte de sua vida e em minutos me descreveu seu sofrimento,
de forma recortada: deixou de fazer karatê, esteve internado em todos os
hospitais, era diagnosticado louco, com síndrome de apego , e que não tinha mais
jeito pra ele.
Quem são essas pessoas que determinam ou não a sanidade das
outras? Quem são verdadeiramente os loucos? É mesmo possível que um ser humano
não tenha mais jeito?
Quem são realmente os loucos?
Aqueles que nos cumprimentam, falam sozinhos, dão bom dia e expõem suas histórias, se vestem diferentes, são fisicamente diferentes, ou são os que se calam, que se enchem de máscaras, e andam como “ Pinóquios ao contrário” com suas bolsas, fones , livros e ipads?
Aqueles que nos cumprimentam, falam sozinhos, dão bom dia e expõem suas histórias, se vestem diferentes, são fisicamente diferentes, ou são os que se calam, que se enchem de máscaras, e andam como “ Pinóquios ao contrário” com suas bolsas, fones , livros e ipads?
São os que conversam com estranhos nos transportes públicos,
ou os formados e ricos de carros raros e caros que se alcoolizam e matam inocentes? Ou são
aqueles que engravatados espancam suas mulheres e causam dor em seus filhos?
Como julgamos! Quem
nos dá a autoridade de nos sentirmos melhores, ou mais “normais” que os outros?
O que é realmente a loucura ?
Este é um texto insano ?
Não sei qual o nome daquele gentil senhor, que me chamou por
duas vezes de senhorita, que abriu seu coração acusando-se ou defendo-se denominando a si mesmo como louco e apegado... Também não sei pra onde ele foi e é provável que jamais saiba.
Entretanto, acredito
que nada é em vão. Comprarei o livro que ele me recomendou, e tentarei ser mais
gentil com as pessoas que se sentarem ao meu lado. É bem provável que quando
eu lhes perguntar "Posso me sentar a seu lado,senhor?", me olhem desconfiado,
mudem de lugar, ou finjam dormir.
Um comentário:
Nossa! Profundo demais! Não sei o que mais mexeu comigo: suas considerações a cerca da sanidade ou a angústia que esse homem vive a cada dia...
Confesso meu preconceito! Sim, enquanto lia as primeiras palavras, logo pensei: "Rute fi assaltada!?"
Meu Deus, vivemos num mundo de tanta violência que o que esperamos é isso! Sermos atacados, sem motivos por um louco... Já não sei mais o que é ser insano: o homem, que é rotulado com a "Síndrome do Apego" ou o professor de Karatê, que de tão apegado aos seus alunos o impediu de viver seu sonho, seu talento, sua vida!
Postar um comentário